sábado, 26 de setembro de 2015

Bicho de Sete Cabeças



 “Escribir lo que debería me da miedo, 
y escribir otra cosa me da vergüenza.”
Betibú, Claudia Piñeiro



O recinto de paredes verde-claras cheira a urina. Nos quartos só há camas, nenhum lugar para guardar os objetos pessoais, uma mesmice. Todo mundo vestido igual, trajam peças largas de um tecido grosso e verde, dessa vez, escuro. As mulheres pedem cigarros às visitas através das grades. Mas ali não é uma prisão. Duas mulheres conversam no pátio:

– Faz muito tempo que você tá aqui? - pergunta a novata.

– Acabou de chegar, boneca? - não responde a interna, devolvendo a pergunta.

– É, eu vim de ambulância. Não tô entendendo direito.

– Quem é seu médico? - apura a interna de argolas nas orelhas.

– Médico?

– É, bonita, todos aqui têm um médico. Isso é um hospital - informa a interna de argolas nas orelhas, algo que destoa. 

– Ah! - e olha ao redor a recém-chegada ainda com a boca aberta no a.

– Psiquiátrico - completa a interna de argolas nas orelhas, a única ali que parece usar assessórios.

– Hum, ele deve estar numa sala de cirurgia agora.

– Sala de eletrochoque você quer dizer – corrige a veterana supondo que a moça tenha chegado acompanhada.

– Não, numa mesa cirúrgica mesmo. Eu afundei um abre-cartas na mão do médico.

– O quê? – pergunta pasma a dos brincos.

–Não queria vir, estava muito nervosa, me obrigaram, arrastaram-me pelos cabelos. Quando puxei sua mão também arrebentei a pulseira do relógio dele. Coitado! - fala para si.

– E quem te trouxe? – puxa-a para sentarem no banco de cimento.

– Ah, conta de você. Por que tá aqui, sua louca? – já sentada a debochada.

– Prefiro que me chame de maluca – acende um cigarro, mais animada, a de argolas.

– Aí, amiga! - incorpora a que mal chegara.

– É um engano eu estar aqui, mas tô gostando. Já tive a chance de surtar, mas sabe como é, perdi a chance. Você também não parece louca. Por que te trouxeram pelos cabelos?

– Porque eu tava certa e o mundo inteiro errado. Eu devia de estar destoando – filosofa já quase adaptada ao entorno.

– Nem psicótica nem depressiva, então? – e traga a maluca passando em seguida o cigarro à colega.

– Um quê de bipolar e um quá de histérica – responde a louca.

– Que mulher não? – e riem as pacientes.

– É a mais viva prova de nossa sanidade: não somos loucas – e devolve o cigarro.

– Assim sendo, pare de drama! Se você não sofre de nenhuma psicopatologia crônica, por que chegou à força aqui?

– Digo não dessas de ter que ingerir psicotrópicos. O máximo que posso precisar, aqui entre nós, hein, é de um chega-pra-lá pra deixar de pirraça.

– Você sofre é de seriedade, amada.

– Séria, eu? Tá de sacanagem - e se distanciam as pacientes de dedos manchados de nicotina.

– É, você é muito séria - reforça a maluca.

– Você nem me conhece pra saber - refuta a louca.

– Tô te achando muito chata - blasfema a paciente crônica atirando longe o Derby.

– Não ouvi - murmura indignada a paciente aguda.

– Ih, cansei, pirada! - grita lá de longe.

– Ué, cadê? - e dá de ombros a portadora de PMD.


A nova paciente olha para um lado e para o outro e não vê a colega. Dá com uma porta espelhada que reflete seu desmazelo. Toma um susto com a imagem, suspira, conforma-se. Apaga uma guimba de cigarro com a sola do calçado preto, tenta ajeitar um pouco o uniforme, e vira o rosto para tomar aquele solzinho gostoso.

 

 

(Foto: Rossy de Palma, em "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", de Almodóvar)