sexta-feira, 9 de julho de 2010

mom&dad






lembro da minha mãe colocando no cabelo um lenço azul de seda florido. sempre esta cena quando ia cozinhar pra nós. todos os dias e ela nunca colocava panelas sobre a mesa. mesmo cuidando sozinha de três meninas, sem ninguém por perto nem micro-ondas, era um capricho cotidiano servir a mesa como deveria ser. “pra comer não precisa chamar duas vezes”- repetia as palavras de seu avô quando já éramos adolescentes e não fazíamos muita questão de sentar todos juntos. não devia ser fácil!  menos ainda em dias de mohamed – assim chamávamos as tempestades de areia tão frequentes ali no Iraque. pra nós crianças, era uma festa porque nestes dias, não íamos à escola. não que não gostássemos, - a vida era perfeita! era só um gostinho pra fugir da rotina. mas minha mãe tinha que limpar a casa, cada grão de areia que entrava sem dó, infinitos grãos, por toda e cada fresta daquela casa.


vivíamos no km 215 e depois na Express Way, acampamentos brasileiros próximos à cidade de Ramadi. era como uma cidade do interior. brincávamos na rua, íamos sozinhas ao colégio, nossos vizinhos eram nossa família. não trancávamos as portas de casa. meu coração de criança desconhecia uma guerra que acontecia entre Irã e Iraque. paz!


nos finais de semana meu pai nos levava pra passear em Bagdá em seu Fiat 147 branco, que tinha gravado o logotipo da Mendes Jr. todos tinham o mesmo carro, todos moravam em casas idênticas, a mesma estampa e modelo de sofá. nas prateleiras do supermercado, chocolate só sonho de valsa e toblerone. e para os adultos, cerveja choca no mercado negro. consumo zero. excelente ambiente para criar os filhos. mamãe juntava sacolas de roupas que não nos cabia mais para doar pras crianças de Juba e lá íamos nós tomar sorvete na capital árabe. algumas cidades fediam a esgoto a céu aberto e era engraçado ver as casas sem telhado. mas as mesquitas eram um espetáculo à parte, transcendiam. no caminho, sempre algum ‘arabico’ ajoelhado em seu tapetinho, direção a Meca, rezando para Alá. meu pai dirigia como um galã cinematográfico, com seus óculos Ray Ban. e minha mãe dizia: “ah, que saudade eu tenho do verde do Brasil!” –toda vez que passávamos pela paisagem marrom, de tamareiras e deserto.


minha mãe tinha alergia nas mãos, os dedos sangravam quando lavava roupa. e nós sempre reluzíamos roupas brancas e cabelos asseadamente escovados. papai conversava com indianos e árabes. construíam uma ferrovia. highway foi a primeira palavra em inglês que aprendi. e depois please, que eu achava que significava aeromoça. nos voos da Lufthansa ou British Airways pro Brasil, era assim que minha mãe as chamava pra pedir para esquentar a mamadeira das minhas irmãs. apertava o botão da cabine e, “please?”


meu pai sempre viajava a negócios e trazia uma Barbie pra gente. e ele as batizava com nomes de acordo com sua origem. ele era cinéfilo e adorava ler, assim, tirava os nomes estrangeiros para nossas bonecas dos livros e dos filmes que via. a Barbie sueca da Fernanda se chamou Ingrid (Ingrid Bergman?) e a americana da Amanda, Julie (Julie Andrews? Noviça Rebelde?), uma vez ele me trouxe de Atenas, uma Bibibô (a Barbie grega). um nome pra ela? Helena (de Troia, deveria ser). houveram também as Barbies japonesas que andavam de bicicleta. ainda me lembro os nomes que ele deu: Lin, Kim, Sususi e Sukiaki. é, acho que meu pai também gostava de carros! enquanto isso, minha mãe nos carregava para ir comprar tapetes persas regados de chá verde doce, muito doce!


quando a obra acabou e finalmente (e infelizmente) tivemos que ir definitivamente embora do Iraque, meu pai nos levou à Disney. ficou feliz quando saí radiante da loja com um Pateta de pelúcia e um boné do Pato Donald na cabeça e minhas irmãs com Mickey, Minnie, Donald e Margarida babies. achou graça quando perguntamos roucas depois de berrar na montanha russa espacial, porquê todo mundo ali era obeso (that´s USA, girls!) mas ficou decepcionadíssimo porque preferíamos pão de forma com presunto e queijo e leite com toddy do que os hambúrgueres enfeitados com gergelim e coke extra large. um belo choque cultural!


como nem tudo são flores, antes de partir, tivemos que deixar pra trás nossos dois cachorrinhos: Toulouse e Bolinha, que faziam minha mãe se levantar cedo no inverno gelado para dar-lhes leite quente e fígado de galinha. foi a única vez na vida que vi meu pai chorar. quando deixamos os bichinhos no abrigo, a minha feminha não queria ficar, arranhava desesperadamente a porta de nosso carro. hoje não sei se meu pai chorava por deixar os cachorros ou de ver as filhas chorarem.