segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O Retratista e a Paixão à Primeira Vista*



Começo

“Nas palmas de tuas mãos leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas, interferindo no teu destino.”
Cora Coralina

Emmanuelle Cienfuegos, a jovem parisiense universitária, está de folga. É janeiro de 2004, tem férias e grana curta, assim que não vai viajar neste inverno. Contra sua vontade, mas nem tanta, permanece em Nerja, el pueblo español donde vive. Um balneário de casinhas brancas no sul da Espanha, cuja população triplica no verão, que na Europa é em agosto.

Sexta-feira passada, naquele bar underground onde adora ir quando quer se acabar, cruzou, quando descia as escadas (para o inferno), com um muchacho de cabelo vermelho. Ele estava indo embora já, mas foi suficiente para um relance: lembrou-se dele há dois anos atrás, no cinema. Sabe até a sessão, um filme de Truffaut, em preto e branco. O menino de cabelo vermelho, chamou-lhe a atenção. Naquele dia e no seguinte, ficou vidrada nele. Depois esqueceu.

Mas de novo, que coincidência, ele atravessa o seu caminho. Vê seu nome no El País. Lê no jornal que hoje abre uma exposição sua. Descobre seu nome, é Pierre, Pierre Chateau Blanc. Parece brincadeira, mas daí ela acha sua foto num site de Internet. E pelo site, seu e-mail. Com este nome, ele deve ser francês que nem ela.

À toa que estava, com as mãos e a cabeça vazia, eis que lhe vem C.L. na cabeça: inventa um e-mail e cria um nome para comunicar-se com ele.

As cortinas do quarto de Emmanuelle são verdes e vermelhas. Gosta de cores, cores de Almodóvar. Veste-se de petit poá e óculos de lentes grandes. Compra mais livros do que lê e adora echar una siesta no sofá da sala da casa de sua mãe.

De Pierre ainda não sabe nada. Só do que vê. Sim, tinha muito pra ver. Por isso, inventa três linhas para ele. Acha graça, envia, esquece.

Ingenuinamente esquece.

Passa um par de semanas. Opa! Emmanuelle se lembra de Pierre Chateau Blanc e do e-mail inventado. Digita o nome, Amelie, mas tem certa dificuldade para recordar a senha... ah sim, senha: vcehmtolindo. Ele diria mais tarde: esse nome que você escolheu é legal! E ela lhe perguntaria: e a senha, você viu? Ele: aí você pegou pesado. Ela acessa sua conta. Está atônita. El muchacho de cabelo vermelho havia respondido:

ESTAVA VIAJANDO. ACABEI DE CHEGAR. IDENTIFIQUE-SE.

Seria um começo de futuro longo e linhas tortas.


Meio

“Porque para te escrever, eu me perfumo toda”.
Clarice Lispector


Emmanuelle que não só no nome, tem fogo correndo nas veias, engata com o desconhecido uma conversa virtual que rende.

Ele está tão curioso. Ela sabe quem ele é, ele nem ideia de quem ela seja. O momento é ideal para ambos, por isto, a historinha flui, como geléia de framboesa, a preferida de sua futura sogra.

A vontade transborda. Ele começa a chama-la de Audrey, não mais Amelie. Se divertem e ele indaga-lhe como se risse: O que você vai fazer se me vir no El Caminito? Vai se dirigir à minha mesa, esticar o braço, apertar minha mão e dizer: Oi, Pierre. Sou a Audrey”?

Já não se agüentavam. Situação s-u-r-r-e-a-l. Ele lhe manda seu número de telefone e diz: Estarei o dia inteiro ao lado do telefone. Me liga.

Enquanto dirige, ela liga. No meio de Here Comes your Man, escuta a voz dele. Congela, desliga. Quase o convida pra uma festa. Não vai à festa e descobre no dia seguinte que ele foi. El mundo es un pañuelo, conclui.

Coragem lhe falta. Corajoso é ele de topar encontrar-se com ela. Dias depois ela liga. Eles combinam de se encontrar finalmente. Ele pergunta: Audrey, você gostou da minha voz? A voz dele é maravilhosa, e mais tarde descobriria suas mãos.

Com jeito simples de coisa boba ela se veste para encontrar com ele, ao mesmo tempo que arruma sua mochila. Aquele dia iria para Sierra Nevada esquiar com as amigas. As férias já estavam acabando.

O coração dele é montanha-russa. Já ela, vai com ar leve e sobe tranqüila os três degraus do café onde combinaram de encontrar-se, enquanto pensa: ¡jo!, este blind date daria um belo tema pra uma redação de inglês.

Assim que a vê, Pierre reconhece-a no ato. Nerja es un pueblo pequeño, assim que já a havia visto antes. Seu rosto, além de familiar, e ela inteira, le gusta muchísimo. Sorri como se já a conhecesse de outros carnavais. E respira pausadamente, aliviado por não ter embarcado numa furada! Pelo menos não até agora.

Ele é retratista, como diria sua avó. Sobre a mesa do café, entre as revistas de fotografia, está uma câmera antiga dele, Olga se chama, que ela pensa ser de brinquedo. Faz-lhe uma foto, que mais tarde, enviaria dizendo: eu já sabia que você era linda.

Eles conversam muito, riem muito, riem da situação. Veem fotografias e bebem café au chocolat, a bebida predileta de Emmanuelle.

Ela sente um calor! Ele não perde a deixa: Deixa eu te dar um beijo pra ver se passa. ¡OLÉ!

As amigas vão buscá-la. Ainda não é verão, mas não interessa, nos cumes de Granada, sempre há neve. Pierre a acompanha. Ela lamenta ter que ir. Vai completamente apaixonada dentro do carro no burburinho da conversa das meninas e é despertada por uma mensagem que chega do seu mais recente objeto de desejo. É seu Pierre Chateau Blanc: Esqueci de dizer, você é linda.

Ai, ai... A vida não poderia ser mais cor-de-rosa para Emmanuelle.


Fim

“O amor pulou o muro
O amor subiu na árvore
Em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou...”
Carlos Drummond de Andrade

Emmanuelle Cienfuegos e suas amigas universitárias esquiam muito em Sierra Nevada e se divertem horrores. Ela quase não se lembra do muchacho de cabelo vermelho. Tiene la cabeza llena de pájaros e quase não distingue se foi real.

Mas quando volta às aulas, abre seu e-mail e lá tem um recado de Pierre: quero te ver de novo. Ela também queria vê-lo: ainda quero te ver muitas vezes.

Eles namoram. Tudo dá certo. Ele enche sua casa de flores. Ela passa muito tempo em seu sofá. Ele trabalha muito em casa. Bebem muitas garrafas de vinho rosé.

Ela cuida de seu gato enquanto ele viaja. Ele traz-lhe presentes originais e mói o café que serve pra ela em xícara de barro.

Eles vão esquiar em Granada, viajam de carro por Andalucía e pelo sul da França.

Ela chora no travesseiro. As amigas se surpreendem, o nariz dela está sempre vermelhinho. Ela só faz comprar lenços de papel e chorar.

Pierre não tem sentimentos.

Emmanuelle não se reconhece.

Pierre troca Emmanuelle por outra Emmanuelle e logo por Dominique.

Emmanuelle não consegue estar no mesmo lugar que Pierre. Seu coraçãozinho está débil.

O amor se estrepou.

Pierre continua sua vida.

Emmanuelle está mais para Sinfuegos.

A fila parece que só anda para Pierre.


“... daqui estou vendo o sangue
Que corre do corpo andrógino
Essa ferida, meu bem,
Às vezes não sara nunca
Às vezes sara amanhã.”
Carlos Drummond de Andrade.

Que tédio!!

*Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com a vida real será mera coincidência.
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