quarta-feira, 18 de agosto de 2010

casinho



sempre que viajava, comprava-lhe presentes que não tinha coragem de dar. o destino acabava sendo sempre o mesmo: seu estômago ou alergias que lhe estouravam na pele. psicossomático.

há algum tempo queria conversar com ele. fazia-lhe falta não um rótulo pr´aquilo tudo, mas porque ela, Clara, era a própria fritação personificada. desde pequena sempre queria saber o porquê de todas as coisas.

estava aflita. não queria o mundo aos seus pés, não era para tanto! mas qualquer lugar que não fosse ali, aquela relação entalada como um sapo na sua garganta.

estava no planetário de Éder Santos quando o telefone tocou . era ele. mas agora, sem chances de atender.

subiu ao 2º andar para ver o restante da exposição do artista mineiro. era tão incrível, ficou tão imersa, que não se lembrou do menino.

era um prédio antigo no centro histórico. subiu para ver outra exposição. foi pelo elevador, que valia uma visita. uma vez no 3º andar, não achou a menor graça naqueles espelhos que refletiam seu corpo distorcido, revelando o desconforme de suas formas. já chegava a alma!

subiu ao 4º andar pelas escadas, escadas imponentes, para ver a exposição permanente. nada lhe acrescentou, somente os filminhos lhe divertiram um pouco. cinéfila!

ele insiste e o telefone toca novamente. mas que hora para telefonar! quer falar um monte, mas agora não dá mesmo. ainda tinha a biblioteca para conhecer, no 5º e último andar. nos corredores encontra bancos sóbrios, de madeira maciça da época do império que parecem querer abraçá-la. senta-se neles para retornar a ligação. tira os sapatos e pousa, confortavelmente, seus pezinhos  sobre o felpudo do tapete.

o telefone mal toca e ele diz num assalto:

- Clara, você queria conversar, não é?

- eu quero. vamos nos encontrar? eu tô aqui no...

- não, vamos resolver isso logo. o que você está querendo?

- fala você primeiro.

ela se ajeita, ajusta o casaco como se para segurar-se em alguma coisa, ficar em ordem. não esperava por essa assim no meio da tarde, por pouco no meio da rua. faz-se de sonsa, diz com borboletas no estômago:

- pode falar. estou escutando.

- eu tenho uma proposta...  a gente pode se encontrar às vezes, assim sem obrigações. continuar desse jeito, gostoso, leve como está. podemos nos ver duas vezes por mês, mas jamais dois dias seguidos. sem maiores preocupações. a gente pode ter um casinho. é permitido ligar de madrugada, sem análises. podemos atender ou não, ir ou não. sem constrangimentos. viajar juntos, jamais! podemos nos encontrar na sua casa ou na minha, sem pudores. podemos nos comunicar a qualquer hora, sem cerimônias.

pausa. é quase uma brutalidade. tonteia com tanta regra!

- alô? Clara?

mas é muito cara-de-pau - pensa puta da vida. ele não me conhece mesmo esse esse... energúmeno! esbraveja docemente:

- você devia ter vergonha de me propor um trem desses! se pelo menos me propusesse um c-a-s-o! mas um c-a-s-i-n-h-o?

e desliga após ordenar que ele não lhe telefone nunca mais. nunca mais, entendeu?

...

pega o metrô na Cinelândia e no trajeto para casa vai tentando achar argumentos para não aceitar a proposta do casinho. ela sempre foi de pensar muito e agora tinha motivos de sobra para uma reflexão bem fundamentada. mas não, não consegue achar nenhum argumento contra.

chega em casa afobada, abre o guarda-chuva na varandinha, lança a bolsa na poltrona, os sapatos pro teto. se atira como uma manga madura em seu sofá de capa de chita e liga pra ele:

- Selton, a proposta ainda está de pé?
 

(foto: Carmem Maura em cena do filme 'Mulheres à beira de um ataque de nervos', de Pedro Almodóvar)