segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Devagarinho



Foto: Bel Junqueira


Queria ser aquele jabuti comendo lentamente sua folha de alface no meio do verde. Colo meu nariz no vidro embaçado pelo alento de minha boca aberta estupefata, observo o jabuti mastigando vagarosamente a folha que arrasta no chão pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. O balanço da folha me embala, fico ali parada, hipnotizada sentindo inveja daquele bicho e de sua vida pausada, ordenada. Dou meia volta e quase posso sentir a mesma tranquilidade do jabuti. Nesse momento nossas realidades estão separadas apenas por um vidro e não uma parede por onde a luz natural não entraria, a transparência do vidro aproxima nossas realidades. Lá ao ar livre o vento balança suavemente as folhas das árvores. Uma delas pode ter caído e talvez o que o jabuti coma não seja alface, a folha é tão grande, mais parece uma taioba, mas a cor verde-clara me faz pensar que é alface. Sim, ele não está sozinho, alguém foi lá alimentá-lo, olhar por ele, cuidá-lo. E uma folha caída na terra não seria doce como alface e por isso apetitosa e comestível pr´aquele jabuti que mastiga devagarinho sua refeição. Sinto inveja do sossego dele, mas ao mesmo tempo estou aconchegada no meu bebê e ele igualmente acolhido no meu peito e aqui, do lado de dentro, quem me embala não é o vento balançando as folhas das árvores do bosque sombreado do jabuti, mas o canto meigo da moça que toca no violão uma canção cheia de ternura. Mergulho nessa simbiose, eu e meu bebê e desse jeito o mundo para. Será por isso que consegui enxergar o bicho lá fora? Por que estou tão serena?


Lá, naquele jardim secreto nos fundos de uma casa localizada no final de uma rua sem saída em plena Copacabana. Uma casa bonita, essa onde estou agora, toda feita de madeira e vidro, “lugar de criação”, assim diz a placa na porta. Esse jabuti, que mora nesse cantinho tão acolhedor, ignora o que é precisar ficar sócio de uma biblioteca pra fazer passar insônia, ficar bêbado pra curar ansiedade e psicossomatizar então, nem se fala! Definitivamente quero ser ele, sinto vontade de imergir na moleza dele, porém outra vez me giro e dou num cômodo espaçoso, de chão macio, acolchoado, mulheres dançando com seus bebês amarrados nelas em bonitos tecidos coloridos. Elas parecem de longe gestantes, mas há um bebezinho confortável e feliz ali naquela bolsa de pano fino enrolada numa mãe igualmente feliz, mas que logo terá que vestir seus sapatos e descerá por aquelas escadas rumo à rua, à vida selvagem, de prazos, relógios trabalhando a pleno vapor, buzina, gente trombando no metrô, pessoas ansiosas comendo as unhas, pessoas atrasadas comendo em pé com seus dedos engordurados digitando freneticamente em seus celulares, pensando si com si, fazendo lé com cré, repetindo, respirando fumaça, correndo sem saber por quê, pálidas e exaustas!


Saio dessa dança materna com vista pro jardim do jabuti tão relaxada que embaralho a língua quando vou falar, pareço embriagada, me esqueço do sóbrio animal cuja vida invejei. É provável que quando eu pousar meus pezinhos no chão após o último degrau e entrar no táxi vou querer de novo ser aquele jabuti mastigando em câmera lenta de quem tem todo o tempo do mundo a seus pés, ou melhor dizendo, a seus cascos.


(Este texto é fruto do curso de escrita criativa, Terapia da Palavra)