domingo, 9 de dezembro de 2018

Bolo de Jiló




Fomos a última família a sair do Iraque, digo, da Express Way, o acampamento da Mendes Jr onde morávamos em porta-campings, espécie de trailer sem rodas, suspenso a um palmo do chão, palmo esse habitado por escorpiões de todas as cores. O preto, o mais temido, o mais venenoso. A Rina, minha melhor amiga, loira de olhos azuis, que a mãe criava pra ser miss, pisou uma vez num amarelo, já morto, mas chorou muito de aflição. A família da Rina foi a penúltima família do acampamento a voltar pro Brasil, então eram apenas nossas famílias e um bando de cachorros vira-lata abandonados a deus dará. Tínhamos casas inteiras, cozinhas de verdade aparelhadas pra gente brincar, meus dois cachorrinhos moravam numa casa só deles e igual a minha. Além dos grandes cães vagabundos, perambulava por aquela cidade fantasma, onde agora só nós habitávamos, uma mula solitária, que uma vez, eu vi, comeu as meias de molho em água e sabão numa bacia esquecida n´alguma casa vazia de gente, mas ainda completamente mobiliada. Ela também deu um rolé pela casa, deixando de lembrança bolotas de bosta pelo corredor. Tadinha, hoje sei que deveria estar faminta e desesperada, perdida. A gata amarela, chamada Gabriela, mas que a gente renomeou de Chaninho, também foi deixada pra trás naquele deserto. De vez em quando ela dormia no berço de nossas bonecas, em cima das bonecas, e a gente querendo brincar não tinha coragem de tirar a gata, porque ela era brava. Um dia a Rina, minha amiga curitibana, teve a ideia de fazermos um bolo pros cachorros. Um bolo de jiló! Tia Geni, a mãe dela, nos deu o jiló, que misturamos com farinha num tabuleiro enorme, mais um monte de planta que catamos pelo caminho. E pelo caminho vimos um rarufe (carneiro em árabe, até hoje só falo rarufe) morto. Curiosas tentamos chegar perto e fomos enxotadas por algum adulto, minha mãe talvez? Descobrimos depois que o rarufe havia morrido eletrecutado e por pouco não levamos um choque também. Foi terra também na massa porque me lembro do cheiro fresco da terra úmida. Vejo nitidamente nós duas, maltrapilhas e encardidas de infância, vivendo um momento lindo, com a mão na massa nos fundos de uma casa só nossa. O bolo foi pro forno e saiu bonito e verde claro. Nós o cortamos, sobre uma mesa cinza de cimento, em pedaços grosseiros e generosos e jogamos pros cachorros que, pasmem, os devoraram em segundos sem deixar farelos. Dias depois, quando só tinha mesmo minha família naquele pedaço de paisagem marrom do Iraque, deram “bola” pros cães, almôndegas de carne envenenada. Eu e minhas duas irmãs acompanhamos, como num filme, o sofrimento deles. Eram muitos, uns 15? Ficamos ajoelhadas no encosto do sofá, bracinhos cruzados apoiados no parapeito da janela, assistindo pelo vidro cristalino as pernas dos bichos ficarem duras e eles não conseguirem mais andar, até caírem mortos. Um deles morreu no degrau da porta de casa, não dava nem pra abrir a porta. Logo voltaríamos pro Brasil e o acampamento seria desmanchado. Exterminar os cachorros seria a opção mais fácil? Sei que meus pais não fizeram nada para impedir, provavelmente nem tenham sido informados daquilo. Àquela época não me importava com o bem estar dos animais, era indiferente, se fosse hoje! Só sei que hoje esse episódio da cidade dos cachorros me vem à mente com cheiro de morte, de deserto, de vazio, de guerra, de fim do mundo. A única lembrança assustadora e feia da minha infância. Nossos dois cachorrinhos, que herdamos filhotes de alguém que já tinha partido e convivemos por muito pouco tempo, deixamos num abrigo, mas isso é outra história triste, pra nós, de deixá-los, porque pra eles sonho que tiveram uma vida feliz.




*Na foto, dando mamadeira a um rarufinho no quintal onde o bolo foi feito.