quinta-feira, 23 de julho de 2015

Engenho



Acho que não fui uma criança criativa, talvez por ter sido reprovada em todas minhas dúvidas. Coitada da minha mãe, cuidava sozinha, sem babá, empregada ou família, de três meninas. A gente morava na Express Way e meu pai durante a semana trabalhava em outro acampamento, o 215, e só vinha nos finais de semana, que lá no Iraque, eram quinta e sexta. Então, eu imagino que ela não devia ter muita paciência pra ficar explicando miudezas pra gente, pois tinha que lavar, passar, limpar, cozinhar, acompanhar deveres escolares e pentear e higienizar três cocotas, eu e minhas irmãs, de quem ela cuidava como se fôssemos bibelôs. Ela morre de arrependimento até hoje de ter me arrastado pela orelha da cozinha ao banheiro, rangendo os dentes, porque eu não entendi de jeito nenhum o para casa daquele dia, que consistia em ligar a sombra do bicho ao bicho. Já meu pai, por não conviver diariamente, talvez tivesse mais paciência na hora de ajudar nestas tarefas. Numa delas eu tinha que inventar um robô, uma máquina, algo assim. E não tinha a menor ideia. Ele pegou e fez. Se o filho fosse meu eu pensaria junto, mas na época educação era assim, você depositava seu saber na criança que ouvia quieta. E meu pai, engenhoso engenheiro, tão caprichoso e inteligente, criou uma máquina de passar roupa. É engraçado que a tarefa doméstica que eu menos gosto hoje em dia é justo passar roupa. Uma pena eu não ter guardado o desenho feito a lápis, que agora só vive, brilhando a grafite, na minha memória. Daria um caldo!


sábado, 4 de julho de 2015

♥ Minhas avós ♥



(com a contribuição da Amanda Machado)

Minhas avós foram duas, a materna e a paterna. Parece óbvio, mas é que não tive avôs. E o que tive foi avô-padrasto, no melhor sentido que esta palavra possa carregar! Minhas avós foram duas mulheres admiráveis e extraordinárias: a Marietta, com dois tês, e a Consuelo, que traduzindo do espanhol, embora a origem dela fosse portuguesa, significa ‘consolo’.
 
Não me lembro de ser consolada por minha avó Consuelo. Ela estava sempre chamando minha atenção: "Minha filha, senta direito!", "Carolina, não dá para estudar ouvindo música!". Só que ela fazia o melhor bife do mundo e hoje eu gostaria de recuperar todos seus vestidos e seus sapatos, que na época, não me dava conta, como eram lindos em toda sua simplicidade. Eu também não me dei conta da mulher forte que era enquanto estava viva e eu era uma adolescente boba e fútil. Vovó Consuelo contava sempre as mesmas piadas que eu não aguentava mais ouvir e nos pegava de papo sem fim no intervalo de um filme na TV. Aprendi com ela que “s” só se usa em quem tem cara e dente na frente, para os outros substantivos, era “z”. Que beleza! Minha avó paterna nunca teve vida de princesa. Talvez na infância em Leopoldina entre tantos irmãos queridos. Pois se casou com um homem que não a merecia, mas que lhe proporcionou quatro amados varões: José Nelson, Luiz Fernando, Cláudio e Pedro Ângelo. Só meu pai não ganhou nome composto e já me esqueci por quê. Desde pequena eu achava que não tinha avôs, mas eles só foram morrer quando eu já estava crescida. Não os conheci e não tive vontade de fazê-lo quando soube. Minhas avós eram tão completas que bastavam elas. Consuelo, nascida em 1913, e Marietta, que veio ao mundo em 1918, ousaram divorciar-se numa época onde isso era inadmissível. E criaram, cada uma, seus quatro filhos, sendo muito bem-sucedidas no ofício.  Consuelo o fez lecionando português. Em Governador Valadares se formou professora e lá trabalhou na mesma escola Ibituruna até aposentar-se. Foi uma das professoras mais queridas e brincalhonas, fato que percebi quando ela cruzava com ex-alunos na rua que não paravam de elogiá-la. Ela também inventou de consertar bicicletas na garagem de sua casa para incrementar a renda. Bravo! Tinha mania de rezar o credo em nossas costas e fazer novenas. Sua casa era a mais quente e nos natais passávamos as madrugadas insones, esmagando pernilongos com os travesseiros. Mas adorávamos aquela casa, os copos brilhando na cristaleira, as romãzeiras carregadas do jardim e a massa de rosca crescendo ao sol. Foi no quarto dela onde me vi no espelho da cabeceira, com meu primeiro sutiã e de absorvente, admirada pela mulher que eu achei que já era. Eu acabava de fazer 13 anos! Ela dividia o quarto com uma casa de marimbondos pregada na parede, e mesmo tão fresquinha, eu não tinha nenhum medo daquela presença selvagem. Era mais um apetrecho fazendo parte daquele universo cheio de graça.

D. Consuelo tinha saúde de ferro e foi lúcida e ágil até o fim. Gabava-se por nunca ter tido dor de cabeça ou precisar usar óculos no alto de suas 87 primaveras, fato comprovado quando fazia palavras cruzadas. Baixinha, tinha os cabelos brancos mais brilhantes que se pode imaginar,  e pálidos, mas vívidos, olhos azuis.

Minhas avós bancaram um “eu quero” numa era onde era mais cabível um “não devo”. Foram genuínas e guerreiras. Espero reconhecer em mim algo da pureza delas. Pois como eu disse, uma adolescente tola e inapta eu era. Que bom que o tempo passa. Mas não volta, pois se assim fosse, passaria mais tempo com minha avó ouvindo a riqueza que ela própria desconhecia ter, de sua trajetória e conquistas. Como o caso daquele célebre e engenhoso fazendeiro, conterrâneo seu, que teve a brilhante ideia de enxertar uma manga num mamão. Sabe no quê deu? Numa banana pra você que acreditou! :)

Vovó Consuelo tinha gostinho de quero mais!

 (Sobre minha outra avó, a Marietta, já escrevi aqui: 


Uma musiquinha pra ela:  
https://www.youtube.com/watch?v=k-ErnX6LCNI



quarta-feira, 24 de junho de 2015

urgência




comete muitos erros de digitação. palavras que são escritas com letras trocadas passam vez em sempre despercebidas. coisa de gente ansiosa. nunca queima a comida que, com frequência, fica crua ou insossa. não tem paciência para dar o tempo que o cozinhar precisa. o carro está sempre amassado, pois não dá tempo hábil para estacionar em lugares apertados. manda cartas pelas metades, e logo, a palavra continuação I, II, III. pode sintoma mais ansioso? não dá tempo da vontade descansar, acomodar e sobreviver.  se quer comprar e não acha, não espera muito, vai lá e encomenda na internet. depois vem a voltagem errada ou se decepciona com o tamanho da coisa: não vai caber. mas é o coração que sobra dentro do peito. repetidas vezes erra o dia da passagem e depois tem que conferir os reembolsos das companhias aéreas no cartão de crédito. coisa de gente ansiosa que não observa os detalhes. a música nunca chega até o fim, porque ela logo aperta o botão para a próxima. uma urgência! uma espera um pouco mais longa num ponto de ônibus revoluciona seu humor. chegar atrasada 5 minutos... tamanho desgaste! dorme mal quando tem que acordar mais cedo que o normal no dia seguinte. coisa de gente ansiosa que não relaxa. fica nervosíssima na arrumação da casa e nos detalhes se vai reunir gente lá. quase sempre se arrepende do que marcou. e aquilo gera uma ansiedade! coisa de sequelada. sofre desesperadamente meses antes de uma palestra que vai dar sobre um assunto que domina tão bem quanto a filmografia de Buñuel, seu cineasta preferido, ou as letras de música de Leonard Cohen que sabe de cor desde quando aprendeu a falar.  costuma ter gastrite, alergias e às vezes, aftas. coisa de gente ansiosa que fica pensando numa coisa que ainda nem aconteceu. deixa as pessoas sem ar. não faz terapia porque tem medo do dinheiro não dar e acha que compensa indo à igreja pedir paciência ou agradecer pelas dádivas concedidas como se nada dependesse de seu esforço próprio. ai, essa mulher que sofre sendo menina!

 https://www.youtube.com/watch?v=GoltwBHXCx8
 



quarta-feira, 13 de maio de 2015

Que lombo!



O marido não era fanático por coisa nenhuma, a não ser pela bunda da mulher. não ligava pra futebol, cerveja, amigos, videogame… mas tinha tara pela bunda de sua mulher. quer sorte maior? e ele era carnívoro mesmo!
Faziam uma bela dupla na cozinha: ambos eram bons de fogão. ele, especialista em risoto, ela em qualquer coisa que você imaginar.
O primeiro grande choque do casamento veio numa noite de dezembro, ou um mês após o enlace. é, bem cedo. ela saiu faminta do trabalho, estacionou o carro no Carrefour e em meia hora já tinha tudo que precisava: um quilo e oitocentos gramas de uma bela peça de lombo.
Enquanto bateu a porta de casa, jogou pra cima os sapatos de salto alto, arrancou o sutiã, lavou as mãos e partiu, aguada e apressada, para a cozinha.
Sorrindo e satisfeita pela sua eficiência de ter comprado uma carne tão bonita e suculenta, temperou-a com ervas perfumadas e azeites puros e pensou: ‘temos jantar pra uma semana!’
O marido chegou, deu-lhe um beijo e elogiou o cheiro bom da comida. entrou, colocou umas bermudas, abriu a garrafa de vinho e perguntou se podia ajudar. ela agradeceu, pois já estava tudo pronto. ele colocou a mesa e ficou de lavar a louça. beberam e comeram.
No dia seguinte, ela vai à natação depois do trabalho e chega em casa ávida de abocanhar aquele lombo. o marido já estava em casa, a luz da sala estava acesa, ela ouvia o barulho da ducha. joga a bolsa pro alto, lava bem as mãos e se dirige afoita à cozinha. a pia cheia de louça, engraçado, a vasilha onde assara o lombo na noite anterior estava com água e detergente. um medo toma conta dela: ‘será que acabou?’ não, o marido não seria tão cruel. abre então, incrédula, a geladeira e sua raiva cresce à medida que vasculha e não encontra rastros do jantar. com fogo nos olhos vai ao banheiro perguntar pro marido ‘cadê o lombo?’, ele, surpreso, responde: ‘uai, comi!’
E aí vem o primeiro choque cultural do casal. ela o xingou de egoísta pra baixo, disse que na casa dela nunca foi assim, que as pessoas pensavam nas outras, que compartilhavam, que não viviam sós. e chorando e gritando, insultou-o de ogro por ter devorado sozinho um quilo de carne. um horror, um horror! tadinhos.
Desde então ela passou a comprar maiores quantidades no mercado e o marido começou a entender que casar é ratear.
Deleites e desvarios.
* Este post faz parte de meu outro blog: https://acabodemecasar.wordpress.com/

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Arabica



Como não falar do meu quarto de criança sem falar do Iraque, se lá eu vivi boa parte da infância? Papai foi coordenar a construção de uma ferrovia na divisa com a Síria. Highway foi a primeira palavra em inglês que aprendi nas capas dos livros que via pela casa, e depois please que achava significar ‘aeromoça’, pois assim minha mãe as chamava nos voos de final de ano ao Brasil, solicitando-as inúmeras vezes para esquentar mamadeiras. Do árabe, a primeira palavra descoberta foi rarufe. Até hoje quando penso em carneiro, gaguejo, pois me vem o bendito rarufe na frente. Logo aprendi teleta teletim, 33, no bingo, diversão de sábado à noite para os adultos no clube Eufrates. Sim, o clube beirava o rio de mesmo nome, onde joguei minha chupeta para nunca mais usar bico. Desde então, chupava dedo escondido, rosto confortavelmente apoiado num travesseirinho de estimação todo babado, no escurinho do quarto que era todo meu, privilégio de primogênita. 

Vivíamos num porta camping e embaixo dele havia escorpiões de todas as cores. De vez em quando alguém era picado por um preto e ficava dias de cama. Minha irmã brincando de esconde-esconde se enfiou debaixo de um, uma vez, e ficou encalacrada. Minha mãe chorava aflita com medo dela ser picada enquanto tentavam puxar a menina, que era dentucinha naquela época. As paredes da casa eram de madeira marrom clara, mas com uns sulcos marrom escuros sobre os quais eu imaginava desenhos e tracejava até pegar no sono, sob os lençóis sem estampas infantis, na cama colada na parede. O ar condicionado do quarto provavelmente estava ligado, já que na terra de Saddam, a temperatura oscilava entre 6 e 50 graus. As cortinas eram de pano fino, listradas de rosa. Lembro-me bem delas esvoaçantes para a paisagem creme da rua, nem um verde sequer naquele deserto, e o Fiat 147 do papai, com dizeres em árabe e o logo da Mendes Jr, estacionado na frente da casa. Não me recordo do tamanho do armário ou se no teto havia aqueles adesivos fluorescentes em forma de planetas que brilhavam quando as luzes se apagavam. Mas sei da cômoda que eu forrava com a bandeira do Iraque, verde, preta e branca, com três estrelas vermelhas, como esquecer? E sobre ela uns bonequinhos de bolinha de gude: ursinhos, uma zebra, o Oscarito, enviados amorosamente por encomenda pela vovó. Para tirar minha irmã Amanda do banho era só mentir: chegou encomenda! Que maldade! Uma delas chegou justo no dia da minha festa de aniversário, um macacão jeans e um par de tênis azul celeste. Era tanta emoção que nem senti o calçado apertando. Quando o tirei no fim do dia, havia um abridor de latas intrometido lá dentro. Minha mãe ria de rolar. Enviavam de tudo para um país em guerra, embora nos 5 anos que estivemos lá, só escutei uma bomba que havia caído em Bagdá. Eu era criança, desconhecia esta parte. Morávamos num acampamento só de brasileiros, próximo à cidade de Ramadi. A Rina, minha melhor amiga, que a mãe criou para ser miss, entrou um dia no meu quarto, recém-chegada de Curitiba, sua terra, trazendo uma revista dos Menudos. Eu não entendi nada, mas ela até babou, manchando a colcha com suco de uva. Eu gostava mesmo era do Trem da Alegria.

No meu quarto também tinha uma coruja que era um relógio de brinquedo. Os olhões dela eram os números e na barriga ficavam os ponteiros. Ali aprendi as horas e fiquei muito triste quando ela foi extraviada junto com uns tapetes persas que minha mãe enviara por um despachante pro Brasil. O Perna Longa, que eu usava de Bob para namorar as Barbies, também sumiu numa dessas. Por um tempo tivemos um rarufinho. Agora me vejo de trancinhas, cabelo liso que só, olhando da janela do meu quarto a Fernanda, minha irmã, dando leite numa mamadeira pra ele. O uniforme do colégio está dependurado na cabeceira da cama, minha mãe xinga minha outra irmã ao longe porque ela disse que algo era ‘fedido’, a TV ligada nos “Anos Dourados" e meu pai chamando pra jogar Buraco com o baralhinho de marcianos que eu ganhei no avião. Aconchego. Noite passada foi bem diferente, pois dormi sem tomar banho e fiz xixi na cama. Tá vendo? Papai do céu castiga.
  
* Arabico era o modo carinhoso (prefiro pensar assim) pelo qual chamávamos os árabes. 

 Foto por Cláudio Machado (papai) - Express Way - Iraque - Out/84

(Este texto é fruto do curso de Escrita Criativa do Terapia da Palavra.)

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Caro autor,





Querido/a: Stella Florence, dezembro de 2009, véspera do meu aniversário de 32 anos. Eu estava no aeroporto de Confins, indo para o lugar que mais amo no mundo, Caraíva. Ou seja, estava radiante quando me deparei com seu livro “32”, 32 anos, 32 homens, 32 tatuagens. Muita coincidência, não? E eu ainda tinha acabado de fazer minha primeira tatoo. Só meu número de mocinhos que extrapolou os 32. Li seu livro todo no avião, era leve que nem eu, me divertiu muito e olha que eu já estava no céu, literalmente. Obrigada por este momento! Haruki Murakami, estou cega de paixão por você! Eu que sou capricorniana, tão racional, tão pés no chão e você vem e me apresenta um mundo fantástico, e eu gosto! Pela primeira vez na vida li uma trilogia, a sua “1Q84”, numa velocidade arrebatadora. Criei um universo paralelo onde tudo é diferente, minha indomável memória inventou uma espécie de 2Q13 íntimo que posso visitar secretamente nos momentos menos propícios. Foi tão saboroso que já comecei a ler um outro filho seu, “Kafka à beira mar”, não consigo te largar! Charles Bukowski, te conheci através de um namorado com a seguinte dedicatória no “Misto Quente”: “um pouco de tosqueira na sua doçura.” Tenho 5 livros seus, com você aprendi que “O amor é um cão dos diabos”! Alan Pauls, seu livro “El Pasado” me inspirou criativamente. Sabe que por sua causa sou tradutora? Me formei psicóloga, mas quando vi o filme “O Passado” (e então li o livro) percebi minha verdadeira vocação: faço legendas como o protagonista de sua história. E a minha monografia da pós-graduação, sobre tradução intersemiótica, foi toda baseada na comparação do livro com o filme de Hector Babenco. Mario Vargas Llosa, “O Paraíso na outra esquina” é um dos meus livros prediletos. Também ilustrei minha monografia com parte dele, o quadro “Nevermore” de Paul Gauguin, um de seus personagens. Se quiserem, posso enviar uma cópia pra vocês. Sigmund Freud, tão didático, transmitiu sua psicanálise com seus livros eternos. Clarice, porque eu nunca me canso de você, essa divindade! Manoel de Barros, queria dormir no seu colo. Você é tão fofo! Gosto de todos seus poemas, especialmente “O fotógrafo”. Uma vez vi num documentário que você punha somente 30 poemas por livro, para não cansar. Imagina se você aborrece alguém! Só se a pessoa tiver uma pedra no lugar do coração. Anne Frank, você seria uma grande escritora e esta perda me dói. José Saramago, te amo! Pedro Juan Gutiérrez, “Insaciável Homem-Aranha”, com você conheci o lado B de Cuba. Muriel Barbery, rainha da delizadeza em “A elegância do ouriço”. Chorei a cântaros como em uma cena de “Dois irmãos”, hein, Milton Hatoum? Que capacidade para emocionar, que poder!  Gabriel García Marquéz, também te amo! Franz Kafka, como não se identificar com sua “Metamorfose”? Mia Couto e suas palavras doces, seu jeito fácil de escrever poeticamente, leio seus venenos como remédios, já que Deus  e o Diabo são uma coisa só. Mario Benedetti, meu poema predileto é “Viceversa”. Alice Sant´Anna, me identifico muito com seu “Rabo de Baleia”; Angélica Freitas, adoro seu deboche em “Um útero é do tamanho de um punho”. Carlos Ruiz Zafón, bú! Isabel Allende, Amoz Oz, Marçal Aquino, Emily Bronte, Milan Kundera, Mario Teixeira...

(foto by me: Olinda, Carnaval 2011)

* texto fruto da oficina literária Terapia da Palavra: http://www.terapiadapalavra.com.br/

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Morfina



  
 “O coração é como árvore – onde quiser volta a nascer.”
 (adaptação de um provérbio moçambicano, por Mia Couto)

Estes patins ganhei de um vizinho. Eles mudaram minha forma de interagir com a cidade, sou bem mais feliz depois deles. Mas nesta manhã acinzentada de outono não estou tão entusiasmada assim. Não sei baixar música no celular, acabo de ouvir Pretty Woman no rádio. Paro e respiro a maresia, esmorecida como este dia sem sol.

O Bruno, que nas festas tocava essa música no violão pra mim, morreu aos 22 anos. Ele também sabia cavaquinho, era professor de inglês, queria ser arquiteto, mas estudava Engenharia Elétrica para agradar o pai, tinha uma banda com shows quase todo sábado, jogava RPG na madrugada, viajava sempre que podia, acampava sempre que alguém topava e namorava comigo há 4 meses.

A mãe pintava nas horas vagas e tirou o quadro do Jesus da parede da sala. Está de castigo. – me disse. A família chamou os amigos para distribuir os pertences do filho. Queria o colchão, mas acabei ficando com o CD do Morphine. Ele estava apaixonado por essa banda, cantarolava o tempo todo no carro: Thursday, Thursday, Thursday. Na verdade, estava comigo, não devolvi. Medo de perder de novo.

Fiquei com inveja dos casais. Chorava quando os via beijando na rua. Achava que nunca mais ia gostar de ninguém. Não tinha vontade de passar batom nem de pentear o cabelo. Também não tinha fome e só parava de chorar quando dormia. Era abrir os olhos e vinha a enchente. Eu, 19 anos, 1º ano de faculdade, namoro recente. Agora, imagina a mãe? Ela sim, devia estar derrotada de tristeza. Nem foi ao enterro, não queria ver o filho morto, seu único filho homem, seu primogênito tão amoroso e amado. Veio me perguntar se ele estava dirigindo de óculos, eu não lembrava. E depois se não tínhamos transado, na esperança do filho ter deixado um rastro, uma lembrança. Infelizmente não estou grávida. – respondi.

Escrevi uma carta que não tive coragem de ler na missa de 7º dia, afinal, quem era eu? Uma reles namoradinha adolescente que só foi conhecer sua família no trágico dia. Imagina o pai? Que não sabia lidar muito bem com aquele menino rebelde cheio de sonhos. E a irmã? Que era tão colada nele? Foi um dos enterros mais cheios que já se viu, ele era muito especial. Acho que são todos extraordinários, esses que morrem cedo. Sempre que eu ficava preocupada por ele atravessar a cidade com sono, me sorria debochado: Se eu morrer, te mando um cartão. Nunca chegou, mas sei que vira e mexe, ele vem me dizer com essa música: Tristeza não combina com você. Pretty woman give your smile to me. Então, sorrio.
(foto: do filme "Asas do Desejo", de Wim Wenders)
 https://www.youtube.com/watch?v=_PLq0_7k1jk

sábado, 19 de julho de 2014

20 e poucos anos




Clara era a única que não estava de passagem. Queria imergir naquela língua, tinha ido pra ficar. Despediram-se um a um. De casa, da rua, do aeroporto, viu todos arrastarem suas malas estufadas. Mas só um deles, Elisa, tão charmosa já àquela idade, levava na bagagem um envelope sorrateiro seu. Palavras duras que só leria em seu país, e que mais tarde responderia numa única frase: “Sua carta me feriu.”, recebida com deleite pela remetente, meses depois.
(...)
As ondas viam tentando soltar as mãos das duas que gargalhavam. Na manhã seguinte sentiriam o estrago das pedras nos pés, que naquela noite cálida, um pouco bêbadas, não se davam conta. Uma de topless, a outra de calcinha e sutiã na terra do Picasso, ¡olé! Recém-formadas, estrangeiras estudando espanhol no verão andaluz. Elisa, uma italiana que exalava sensualidade e Clara, made in Brazil, que mesmo na Europa, não tinha coragem de exibir os peitos. Na areia, as esperavam pra um ‘verdade ou consequência’, dois alemães de olhos azuis, três italianos amigos de infância, uma japonesa loira tatuada, uma húngara e uma eslovena. Uma amizade que parecia tudo, menos efêmera, mas que durou apenas aquele próspero mês de agosto.
Quando Clara a viu pela primeira vez na escola, teve um pensamento adolescente: “Quero ser amiga dessa menina”. A recíproca, ainda que meio adversa, veio no joguinho infeliz esse, que a garrafa aponta em duas direções, um pergunta, o outro responde, com a única regra de que é proibido mentir. Roberto, o romano, então indaga à conterrânea: de quem aqui você mais gosta? Elisa hesita numa pausa que faz todos os homens ansiarem por seu nome na boca dela, enquanto o coração da brasileira, feito montanha-russa, prevê a resposta que vem certeira: Clara.
Embaraço, mudez geral, fim de linha.
Davide, o napolitano que era a cara do Bono Vox, acompanha Clara até em casa e eles se beijam na calçada. A confissão de Elisa apressa a materialização do desejo dos dois. Esta noite, Clara não dorme, extasiada com a revelação da amiga e com o chega pra cá do pretendente. Tantas emoções.
Os dias correm, Clara ainda gosta de Davide, mas fica atraída por Elisa que passa a enxergar Davide com outros olhos, que também cobiça Elisa mesmo querendo continuar com Clara. Roberto discute em italiano com Davide e Clara percebe que estão falando de Elisa. Há uma tramoia no ar. O grupo dos 10 vai à praia da Malagueta, come boquerones em Pedregalejo, sai de tapas pela Calle Granada, baila, embebeda-se de tinto de verano, se divertem a valer. Davide com Clara. Clara e Elisa continuam amigas, mas nem tanto, desde a garrafa.
Voltando de um karaokê, despedida dos italianos, Elisa diz a Clara que Davide escolheu ficar com ela porque ela era brasileira e seria muito mais exótico compartilhar isso com os amigos, do que voltar pra Nápoles dizendo que conheceu uma italiana na Espanha. Fala assim com Clara como se listasse seus filmes favoritos. A outra, atônita, ouve calada e mais tarde, por dormirem na mesma casa, consegue plantar a carta que grita:
Não, Elisa, ele não escolheu ficar comigo porque teria mais graça entre os amigos narrar o verão com uma brasileira. Engana-se. Ele preferiu ficar comigo porque eu sou mais interessante, mais bonita, mais doce, mais natural, mais legal, mais vistosa e mais um monte de mais que não achou graça em você, independentemente de nosso local de nascimento. ¡Lo siento mucho! Espero que possam continuar a amizade aí na Itália, nós já temos encontro marcado, em um ano, em Paris, quando eu estarei voltando para o Brasil. Uma pena a sua arrogância, presunção e falta de discernimento, seu ego inflado. Tudo poderia ter sido diferente. Saludos desde Málaga, Clara.
Coração escoado pelos dedos é bem melhor do que preso na garganta ou pesando no peito. Bem feito!
(mais um texto fruto da oficina de escrita criativa: http://www.terapiadapalavra.com.br/)