quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Arabica



Como não falar do meu quarto de criança sem falar do Iraque, se lá eu vivi boa parte da infância? Papai foi coordenar a construção de uma ferrovia na divisa com a Síria. Highway foi a primeira palavra em inglês que aprendi nas capas dos livros que via pela casa, e depois please que achava significar ‘aeromoça’, pois assim minha mãe as chamava nos voos de final de ano ao Brasil, solicitando-as inúmeras vezes para esquentar mamadeiras. Do árabe, a primeira palavra descoberta foi rarufe. Até hoje quando penso em carneiro, gaguejo, pois me vem o bendito rarufe na frente. Logo aprendi teleta teletim, 33, no bingo, diversão de sábado à noite para os adultos no clube Eufrates. Sim, o clube beirava o rio de mesmo nome, onde joguei minha chupeta para nunca mais usar bico. Desde então, chupava dedo escondido, rosto confortavelmente apoiado num travesseirinho de estimação todo babado, no escurinho do quarto que era todo meu, privilégio de primogênita. 

Vivíamos num porta camping e embaixo dele havia escorpiões de todas as cores. De vez em quando alguém era picado por um preto e ficava dias de cama. Minha irmã brincando de esconde-esconde se enfiou debaixo de um, uma vez, e ficou encalacrada. Minha mãe chorava aflita com medo dela ser picada enquanto tentavam puxar a menina, que era dentucinha naquela época. As paredes da casa eram de madeira marrom clara, mas com uns sulcos marrom escuros sobre os quais eu imaginava desenhos e tracejava até pegar no sono, sob os lençóis sem estampas infantis, na cama colada na parede. O ar condicionado do quarto provavelmente estava ligado, já que na terra de Saddam, a temperatura oscilava entre 6 e 50 graus. As cortinas eram de pano fino, listradas de rosa. Lembro-me bem delas esvoaçantes para a paisagem creme da rua, nem um verde sequer naquele deserto, e o Fiat 147 do papai, com dizeres em árabe e o logo da Mendes Jr, estacionado na frente da casa. Não me recordo do tamanho do armário ou se no teto havia aqueles adesivos fluorescentes em forma de planetas que brilhavam quando as luzes se apagavam. Mas sei da cômoda que eu forrava com a bandeira do Iraque, verde, preta e branca, com três estrelas vermelhas, como esquecer? E sobre ela uns bonequinhos de bolinha de gude: ursinhos, uma zebra, o Oscarito, enviados amorosamente por encomenda pela vovó. Para tirar minha irmã Amanda do banho era só mentir: chegou encomenda! Que maldade! Uma delas chegou justo no dia da minha festa de aniversário, um macacão jeans e um par de tênis azul celeste. Era tanta emoção que nem senti o calçado apertando. Quando o tirei no fim do dia, havia um abridor de latas intrometido lá dentro. Minha mãe ria de rolar. Enviavam de tudo para um país em guerra, embora nos 5 anos que estivemos lá, só escutei uma bomba que havia caído em Bagdá. Eu era criança, desconhecia esta parte. Morávamos num acampamento só de brasileiros, próximo à cidade de Ramadi. A Rina, minha melhor amiga, que a mãe criou para ser miss, entrou um dia no meu quarto, recém-chegada de Curitiba, sua terra, trazendo uma revista dos Menudos. Eu não entendi nada, mas ela até babou, manchando a colcha com suco de uva. Eu gostava mesmo era do Trem da Alegria.

No meu quarto também tinha uma coruja que era um relógio de brinquedo. Os olhões dela eram os números e na barriga ficavam os ponteiros. Ali aprendi as horas e fiquei muito triste quando ela foi extraviada junto com uns tapetes persas que minha mãe enviara por um despachante pro Brasil. O Perna Longa, que eu usava de Bob para namorar as Barbies, também sumiu numa dessas. Por um tempo tivemos um rarufinho. Agora me vejo de trancinhas, cabelo liso que só, olhando da janela do meu quarto a Fernanda, minha irmã, dando leite numa mamadeira pra ele. O uniforme do colégio está dependurado na cabeceira da cama, minha mãe xinga minha outra irmã ao longe porque ela disse que algo era ‘fedido’, a TV ligada nos “Anos Dourados" e meu pai chamando pra jogar Buraco com o baralhinho de marcianos que eu ganhei no avião. Aconchego. Noite passada foi bem diferente, pois dormi sem tomar banho e fiz xixi na cama. Tá vendo? Papai do céu castiga.
  
* Arabico era o modo carinhoso (prefiro pensar assim) pelo qual chamávamos os árabes. 

 Foto por Cláudio Machado (papai) - Express Way - Iraque - Out/84

(Este texto é fruto do curso de Escrita Criativa do Terapia da Palavra.)