Foto: Bel Junqueira |
Queria ser aquele jabuti comendo lentamente sua
folha de alface no meio do verde. Colo meu nariz no vidro embaçado pelo alento
de minha boca aberta estupefata, observo o jabuti mastigando vagarosamente a
folha que arrasta no chão pra lá e pra cá, pra lá e pra cá. O balanço da folha me
embala, fico ali parada, hipnotizada sentindo inveja daquele bicho e de sua
vida pausada, ordenada. Dou meia volta e quase posso sentir a mesma
tranquilidade do jabuti. Nesse momento nossas realidades estão separadas apenas
por um vidro e não uma parede por onde a luz natural não entraria, a
transparência do vidro aproxima nossas realidades. Lá ao ar livre o vento
balança suavemente as folhas das árvores. Uma delas pode ter caído e talvez o
que o jabuti coma não seja alface, a folha é tão grande, mais parece uma
taioba, mas a cor verde-clara me faz pensar que é alface. Sim, ele não está
sozinho, alguém foi lá alimentá-lo, olhar por ele, cuidá-lo. E uma folha caída na
terra não seria doce como alface e por isso apetitosa e comestível pr´aquele jabuti
que mastiga devagarinho sua refeição. Sinto inveja do sossego dele, mas ao
mesmo tempo estou aconchegada no meu bebê e ele igualmente acolhido no meu
peito e aqui, do lado de dentro, quem me embala não é o vento balançando as folhas
das árvores do bosque sombreado do jabuti, mas o canto meigo da moça que toca no
violão uma canção cheia de ternura. Mergulho nessa simbiose, eu e meu bebê e
desse jeito o mundo para. Será por isso que consegui enxergar o bicho lá fora?
Por que estou tão serena?
Lá, naquele jardim secreto nos fundos de uma casa localizada
no final de uma rua sem saída em plena Copacabana. Uma casa bonita, essa onde
estou agora, toda feita de madeira e vidro, “lugar de criação”, assim diz a
placa na porta. Esse jabuti, que mora nesse cantinho tão acolhedor, ignora o
que é precisar ficar sócio de uma biblioteca pra fazer passar insônia, ficar
bêbado pra curar ansiedade e psicossomatizar então, nem se fala! Definitivamente
quero ser ele, sinto vontade de imergir na moleza dele, porém outra vez me giro e dou num cômodo espaçoso, de chão
macio, acolchoado, mulheres dançando com seus bebês amarrados nelas em bonitos
tecidos coloridos. Elas parecem de longe gestantes, mas há um bebezinho confortável
e feliz ali naquela bolsa de pano fino enrolada numa mãe igualmente feliz, mas
que logo terá que vestir seus sapatos e descerá por aquelas escadas rumo à rua,
à vida selvagem, de prazos, relógios trabalhando a pleno vapor, buzina, gente
trombando no metrô, pessoas ansiosas comendo as unhas, pessoas atrasadas
comendo em pé com seus dedos engordurados digitando freneticamente em seus
celulares, pensando si com si, fazendo lé com cré, repetindo, respirando
fumaça, correndo sem saber por quê, pálidas e exaustas!
Saio dessa dança materna com vista pro jardim do
jabuti tão relaxada que embaralho a língua quando vou falar, pareço embriagada,
me esqueço do sóbrio animal cuja vida invejei. É provável que quando eu pousar
meus pezinhos no chão após o último degrau e entrar no táxi vou querer de novo
ser aquele jabuti mastigando em câmera lenta de quem tem todo o tempo do mundo
a seus pés, ou melhor dizendo, a seus cascos.
(Este texto é fruto do curso de escrita criativa, Terapia da Palavra)