lembro da minha mãe colocando no
cabelo um lenço azul de seda florido. sempre esta cena quando ia cozinhar pra
nós. todos os dias e ela nunca colocava panelas sobre a mesa. mesmo cuidando
sozinha de três meninas, sem ninguém por perto nem micro-ondas, era um
capricho cotidiano servir a mesa como deveria ser. “pra comer não precisa
chamar duas vezes”- repetia as palavras de seu avô quando já éramos
adolescentes e não fazíamos muita questão de sentar todos juntos. não devia ser
fácil! menos ainda em dias de mohamed
– assim chamávamos as tempestades de areia tão frequentes ali no Iraque. pra
nós crianças, era uma festa porque nestes dias, não íamos à escola. não que não
gostássemos, - a vida era perfeita! era só um gostinho pra fugir da rotina. mas
minha mãe tinha que limpar a casa, cada grão de areia que entrava sem dó,
infinitos grãos, por toda e cada fresta daquela casa.
vivíamos no km 215 e depois na
Express Way, acampamentos brasileiros próximos à cidade de Ramadi. era como uma
cidade do interior. brincávamos na rua, íamos sozinhas ao colégio, nossos
vizinhos eram nossa família. não trancávamos as portas de casa. meu coração de
criança desconhecia uma guerra que acontecia entre Irã e Iraque. paz!
nos finais de semana meu pai nos
levava pra passear em Bagdá em seu Fiat 147 branco, que tinha gravado o
logotipo da Mendes Jr. todos tinham o mesmo carro, todos moravam em casas
idênticas, a mesma estampa e modelo de sofá. nas prateleiras do supermercado,
chocolate só sonho de valsa e toblerone. e para os adultos, cerveja choca no
mercado negro. consumo zero. excelente ambiente para criar os filhos. mamãe
juntava sacolas de roupas que não nos cabia mais para doar pras crianças de
Juba e lá íamos nós tomar sorvete na capital árabe. algumas cidades fediam a
esgoto a céu aberto e era engraçado ver as casas sem telhado. mas as mesquitas
eram um espetáculo à parte, transcendiam. no caminho, sempre algum ‘arabico’
ajoelhado em seu tapetinho, direção a Meca, rezando para Alá. meu pai
dirigia como um galã cinematográfico, com seus óculos Ray Ban. e
minha mãe dizia: “ah, que saudade eu tenho do verde do Brasil!” –toda vez
que passávamos pela paisagem marrom, de tamareiras e deserto.
minha mãe tinha alergia nas mãos,
os dedos sangravam quando lavava roupa. e nós sempre reluzíamos roupas brancas
e cabelos asseadamente escovados. papai conversava com indianos e árabes.
construíam uma ferrovia. highway foi
a primeira palavra em inglês que aprendi. e depois please, que eu achava que significava aeromoça. nos voos da Lufthansa
ou British Airways pro Brasil, era assim que minha mãe as chamava pra pedir
para esquentar a mamadeira das minhas irmãs. apertava o botão da cabine e,
“please?”
meu pai sempre viajava a negócios
e trazia uma Barbie pra gente. e ele as batizava com nomes de acordo com sua
origem. ele era cinéfilo e adorava ler, assim, tirava os nomes estrangeiros
para nossas bonecas dos livros e dos filmes que via. a Barbie sueca da Fernanda
se chamou Ingrid (Ingrid Bergman?) e a americana da Amanda, Julie (Julie Andrews?
Noviça Rebelde?), uma vez ele me trouxe de Atenas, uma Bibibô (a Barbie grega).
um nome pra ela? Helena (de Troia, deveria ser). houveram também as Barbies
japonesas que andavam de bicicleta. ainda me lembro os nomes que ele deu: Lin,
Kim, Sususi e Sukiaki. é, acho que meu pai também gostava de carros! enquanto
isso, minha mãe nos carregava para ir comprar tapetes persas regados de
chá verde doce, muito doce!
quando a obra acabou e finalmente
(e infelizmente) tivemos que ir definitivamente embora do Iraque, meu pai nos
levou à Disney. ficou feliz quando saí radiante da loja com um Pateta de
pelúcia e um boné do Pato Donald na cabeça e minhas irmãs com Mickey, Minnie,
Donald e Margarida babies. achou graça quando perguntamos roucas depois de berrar
na montanha russa espacial, porquê todo mundo ali era obeso (that´s USA,
girls!) mas ficou decepcionadíssimo porque preferíamos pão de forma com
presunto e queijo e leite com toddy do que os
hambúrgueres enfeitados com gergelim e coke extra large. um belo choque
cultural!
como nem tudo são flores, antes
de partir, tivemos que deixar pra trás nossos dois cachorrinhos: Toulouse e
Bolinha, que faziam minha mãe se levantar cedo no inverno gelado para dar-lhes
leite quente e fígado de galinha. foi a única vez na vida que vi meu pai
chorar. quando deixamos os bichinhos no abrigo, a minha feminha não
queria ficar, arranhava desesperadamente a porta de nosso carro. hoje não sei
se meu pai chorava por deixar os cachorros ou de ver as filhas chorarem.