“O coração é como árvore – onde quiser volta a nascer.”
(adaptação de um provérbio moçambicano, por Mia Couto)
Estes patins ganhei de um vizinho. Eles mudaram minha forma de interagir com a cidade, sou bem mais feliz depois deles. Mas nesta manhã acinzentada de outono não estou tão entusiasmada assim. Não sei baixar música no celular, acabo de ouvir Pretty Woman no rádio. Paro e respiro a maresia, esmorecida como este dia sem sol.
O Bruno, que nas festas tocava essa música no violão pra mim, morreu aos 22 anos. Ele também sabia cavaquinho, era professor de inglês, queria ser arquiteto, mas estudava Engenharia Elétrica para agradar o pai, tinha uma banda com shows quase todo sábado, jogava RPG na madrugada, viajava sempre que podia, acampava sempre que alguém topava e namorava comigo há 4 meses.
A mãe pintava nas horas vagas e tirou o quadro do Jesus da parede da sala. Está de castigo. – me disse. A família chamou os amigos para distribuir os pertences do filho. Queria o colchão, mas acabei ficando com o CD do Morphine. Ele estava apaixonado por essa banda, cantarolava o tempo todo no carro: Thursday, Thursday, Thursday. Na verdade, estava comigo, não devolvi. Medo de perder de novo.
Fiquei com inveja dos casais. Chorava quando os via beijando na rua. Achava que nunca mais ia gostar de ninguém. Não tinha vontade de passar batom nem de pentear o cabelo. Também não tinha fome e só parava de chorar quando dormia. Era abrir os olhos e vinha a enchente. Eu, 19 anos, 1º ano de faculdade, namoro recente. Agora, imagina a mãe? Ela sim, devia estar derrotada de tristeza. Nem foi ao enterro, não queria ver o filho morto, seu único filho homem, seu primogênito tão amoroso e amado. Veio me perguntar se ele estava dirigindo de óculos, eu não lembrava. E depois se não tínhamos transado, na esperança do filho ter deixado um rastro, uma lembrança. Infelizmente não estou grávida. – respondi.
Escrevi uma carta que não tive coragem de ler na missa de 7º dia, afinal, quem era eu? Uma reles namoradinha adolescente que só foi conhecer sua família no trágico dia. Imagina o pai? Que não sabia lidar muito bem com aquele menino rebelde cheio de sonhos. E a irmã? Que era tão colada nele? Foi um dos enterros mais cheios que já se viu, ele era muito especial. Acho que são todos extraordinários, esses que morrem cedo. Sempre que eu ficava preocupada por ele atravessar a cidade com sono, me sorria debochado: Se eu morrer, te mando um cartão. Nunca chegou, mas sei que vira e mexe, ele vem me dizer com essa música: Tristeza não combina com você. Pretty woman give your smile to me. Então, sorrio.
(foto: do filme "Asas do Desejo", de Wim Wenders)
https://www.youtube.com/watch?v=_PLq0_7k1jk
Você falou do palimpsesto... Já eu não conhecia Morphine...hihihi. Fui ouvir, achei muito interessante. Realmente, dá pra sentir o peso das palavras dessa moça, dá pra perceber os sentimentos que ainda doem nela. Suas palavras são dela. Texto tão cru, direto, cortante, realista. Mandou muito bem. Quedis mais?
ResponderExcluirExiste uma beleza em histórias tristes, né? Talvez por que dê pra sentir o amor que flutua entre as palavras que tão amavelmente dão via à elas! Meu trecho preferido é este:” Nunca chegou, mas sei que vira e mexe, ele vem me dizer com essa música: Tristeza não combina com você. Pretty woman give your smile to me. Então, sorrio.” Belíssimo, pois encerra o texto com uma alegria conformada… Pelo menos é o que eu senti,
ResponderExcluirps: se Morphine for realmente seu gosto musical, temos algo em comum! haha
M.D.