On the Road, de Walter Salles |
A
espanhola Rosa Montero, num de seus livros, “La Loca de
la Casa”, conta que organiza suas lembranças a partir dos namorados que teve
e dos livros que escreveu. Fiquei pensando em como eu ordenava as minhas. Seria
por idade? Já que faço aniversário no Natal, todo ano novo é também uma idade
nova. Não. Por ritos de passagem e fatos marcantes? Quando entrei na faculdade,
quando tive o primeiro emprego, quando fui morar sozinha, quando me casei, engravidei... também não.
Pelas casas em que morei, pelos forrós que dancei, pelas viagens que fiz, pelos bichinhos
de estimação que tive... Me dei conta de que organizo minhas memórias pelas cidades onde
morei.
Nascida
em BH. Tem uma foto na portaria do prédio no dia em que minhas irmãs
(gêmeas) vieram ao mundo. Tão risonha, nem parecia que acabara de perder
o posto de filha
única. E ainda por cima, em dose dupla.
Pequena
em Marabá (onde meu pai foi Pará). Minha mãe conta que morávamos bem próximos da
casa da luz vermelha e eu pedi uma luz igual pra nossa casa - logo se vê, já era rebelde. - Mas a única
lembrança que tenho desse tempo é de uma aranha caranguejeira na parede branca
num dia bem quente de carnaval.
Infância no Iraque. Por 5 anos pra lá de Bagdá, mais uma vez, por causa de uma obra
do trabalho do meu pai, engenheiro ferroviário. Highway foi a primeira palavra em inglês
que aprendi a ler. Lembranças muito felizes de um povo generoso, os árabes. Embora meu pai dissesse que legais mesmo eram
os indianos. Até hoje minha mãe não deixa a gente passar o saleiro na mesa
entregando em mãos. Lá na Express Way, um dos acampamentos brasileiros da Mendes Jr
onde moramos, num almoço, quando minha mãe passou o sal para a indiana, ela deu a
entender por gestos afoitos, na língua dela, não, não, que tinha que botar na mesa e
então ela pegaria, obrigada! Passar o sal de mão em mão traz má sorte.
Depois veio a Disney, como despedida do Iraque e vinda
definitiva para o Brasil. Voltei com o Pateta de pelúcia e um boné do Pato Donald.
Minha irmã Amanda, com Minnie e Mickey, Fernanda, com Donald e Margarida. Bem
democrático, cada uma cada uma, sem repetir preferências.
Atrás
do carro não tinha
briga para quem ia na janela. As gêmeas, uma de cada lado do carro, eu
gostava de ir
no meio, um cotovelo apoiado em cada banco, cantando de cor a letra inteira de “Infinita Highway”.
Já não
estávamos mais na paisagem marrom do Iraque, de tamareiras e deserto,
mas nas
montanhas de Minas Gerais, mais precisamente no bairro Santo Antônio, repleto de ladeiras, em
Belo
Horizonte, depois em Lourdes onde meus pais moram até hoje, quero dizer,
minha mãe e a irmã caçula. Porque meu pai, ah! esse está até hoje
cortando chão.
E foram longos anos, minha mãe comprando móveis
provisórios, na iminência de que poderíamos nos mudar de novo, mas foi só meu
pai: São Paulo, Vitória, ia e vinha. E aí foi colégio, várias viagens durante a faculdade, menina
caminhando a trancos, barrancos e dramas pra virar mulher.
Fui pra Espanha. Me formei e fui pra Málaga, solita, Andaluzia, berço
de Picasso. Era meu sonho vivenciar outra cultura, aprender espanhol dentro de
uma família espanhola. E que sorte eu tive! Fui acolhida por pessoas muito especiais. Todo mundo morando na mesma finca
(condomínio). Eu, Ángela e Luli, a pequena ninã de 2 anos que eu cuidava, na
casa de baixo Carlete e Adol, irmãos de Ángela, e duas sobrinhas, Bebi e Paula,
filhas de Carlete, e na última casa, os avós de Luli, Mariángeles e Carlos, e
seu tio mais novo, Pablo. Longe de todos os conhecidos, amadureci, perdi muito da timidez,
fiquei desenvolta e comecei a comer salada.
Voltei pro Brasil, caí no forró e perdi, no chorar da sanfona, os
quilinhos ganhos na Espanha. Virei forrozeira de bater ponto no forró da
quinta, e ali construí minha alto autoestima. Fui morar sozinha e tornei-me um pouco adulta enfim.
Fui pra Caraíva uns dois anos depois, paraíso baiano com
menos de mil habitantes, uma quase ilha onde carros não entram e àquela época
com luz recém-chegada, porque até então, luz de noite era só com gerador. Verão no
Lagoa, fui cair no lugar mais interessante do lugar. A estada hedonista de um ano esticou pra quase dois. Ali aprendi a desapegar e conviver com sapos, insetos e gente muito humilde, pescadores.
De lá vim pra capital carioca. Fui chamada pra um cargo de
confiança. Vim pra entrevista, tive que pegar um sapato e uma calça emprestados
de uma amiga, só tinha chinelo. Cheguei com medo de atravessar rua, lá na Bahia
só tinha carroça. Entrava no supermercado e achava que estava num shopping. O cheiro da maresia, perfume predileto para uma mineira que já estava com saudades da vida cosmopolita.
Em Medellín, na Colômbia, engravidei!
No Rio, me casei - não necessariamente nesta ordem. No Rio me finquei, mas por enquanto!
Acabou
rendendo o assunto, esse de ordenar as memórias. É como a autora
escreveu: "Podríamos deducir que los humanos somos, por encima de todo,
novelistas."
(texto escrito fruto do Clube do Autor do Terapia da Palavra)